Espero que essa história absurda do aborto assumir um papel tão importante na campanha presidencial tenha sofrido um abalo com o – quase – impecável editorial do Estadão de segunda. (Por que será que Reinaldo Azevedo não recomendou sua leitura?) Ali é exposto, sem meias palavras, todo o obscurantismo da situação: assumi-lo como uma forma de chegar à presidência significa fazer um pacto com o que há de mais conservador na sociedade brasileira. Gostaria muito de que a classe média, a qual gosta de se ver como esclarecida e moderna, arejasse o ambiente e relegasse esse debate para o lugar que lhe é devido: uma discussão mais ampla entre diversos setores da sociedade civil, as instituições que lidam diretamente com a questão e os setores religiosos. (Infelizmente isso ainda parece vai levar algum tempo pra acontecer como se percebe por essas duas matérias da Folha: aqui e aqui.)
Infelizmente, o Estadão não radicaliza seu argumento, pois isso significaria criticar diretamente a José Serra, candidato que abertamente, o que é muito bom, apóia. Serra incorporou o discurso pró-vida de tal forma que, às vezes, ele quase me soa como se fosse o porta-voz do Vaticano. Agarrou-se a essa idéia – me pergunto se sem medir suas conseqüências? – como uma maneira de tirar votos importantes de Dilma entre os setores evangélicos, compostos, em sua grande maioria, das camadas mais pobres da nossa sociedade, um eleitorado, ao menos em tese, mais propenso a optar por uma seqüência do governo petista.
(Resta mesmo saber se foram esses setores os grandes responsáveis pela surpreendente ascensão de Marina. Rezo pra que não tenha sido, o que mostraria um certo grau de amadurecimento da democracia brasileira.)
Contudo, o que mais me chamou a atenção foram as reações à direita (Lamounier, Kramer, Azevedo e Constantino) em relação à postura de Dilma no debate da Band. Há uma certa deslegitimação do tom – chamaremos de agressivo, só pra ficar dentro desse universo semântico – assumido pela candidata petista no último domingo. Num certo sentido, o que a direita comemora é uma aposta no sentimento de repulsa que a boa e velha cordialidade brasileira – aqui entendida no seu sentido mais prosáico – sempre sentiu em relação a uma discussão mais contundente.
O problema para essa direita é que, se a sociedade brasileira estiver mesmo passando por um conjunto mais profundo de transformações por que parece, a agressividade de Dilma pode deixar de ser lida como ruptura com um decoro subserviente, passando a incorporar o tom de reivindicação de que uma minoria ascendente precisa se valer para disputar um lugar ao sol que até então lhe fora negado.
Assim, a “verdadeira” Dilma – “hostil”, “deselegante”, “emocionalmente despreparada”, “violenta, “destemperada”, segundo os olhos daqueles analistas –, que se revelou a todos na noite de domingo, assume ao menos uma das características que as elites mais temem naqueles que lhes contestam os lugares que julgam seus por direito: a capacidade de erguer a cabeça, impostar a voz e dizer, num tom que se faça ouvir, que, para subverter as hierarquias construídas ao longo de muito tempo, é necessário, antes de tudo, se impor. (Será que eles sentem saudades do poste?)
Em tempo, na entrevista que O Globo fez com Carlos Araújo, ex-companheiro de Dilma, a imagem que nos surge é, se não oposta, completamente divergente no juízo de valor.
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