16 de agosto de 2010

Post sobre a cegueira

Pois é, os emails trocados entre Felipe e Renato só provam o quanto eu estou correto. Este blog só funciona propriamente quando há um certo estímulo, que desta vez veio de um comentário que Renato fez a partir do editorial da Folha do último sábado, dia 14, e de um textinho de Eliane Cantanhêde de ontem. É, meu caro, parece mesmo que a ala paulista da intelectualidade peessedebista – uma grande parte dos colunistas, editores e donos de jornais em São Paulo, como você bem disse – vai imolar Aécio Neves no altar dos culpados pela derrota eleitoral que começa a se vislumbrar, mas que ainda não está tão certa quanto aqueles mais apressados querem fazer crer. (Renato vai um pouquinho mais longe, levantando a bola de um certo “paulistanismo por poder”, mas aí eu deixo que ele mesmo corte. Fica o convite.)

Eu, de minha parte, me interessei deveras pelo textinho da Cantanhêde (com artigo e tudo), uma pecinha miúda – seis paragrafozinhos com frases curtinhas, sem maiores desenvolvimentos, bem tipicamente jornalístico –, mas cujas implicações, essas sim, me parecem da maior importância.

O assunto: o banho de água fria que a última pesquisa do Datafolha – o instituto que demorou, mas deu o braço a torcer frente à ascensão de Dilma – deu na cúpula do PSDB. Este textinho se movimenta entre um derrotismo, que se pergunta qual será o futuro da oposição, e uma certa perplexidade entre o que fazer para evitar que uma era de trevas se instale definitivamente sobre o Brasil. (É bom que se diga que a ênfase dramática é minha. Nossa colunista é bem mais contida.) E é aí que ele fica interessante.

Cantanhêde escreve:
“A dúvida é se o partido resiste à eternidade de 20 anos na oposição – 8 de Lula, 4 de Dilma e mais 8 de Lula a partir de 2014.”
Engraçado o questionamento, que reforça ao menos dois factóides. Primeiro, que Dilma não passa mesmo de uma marionete de Lula, uma espécie de tampão pseudo-democrático, cuja única função é perpetuar o atual presidente e o petismo no poder sem que haja uma ruptura tão radical quanto a que aconteceu na execrável e autoritária Venezuela de Hugo Chávez. É, como diz Reinaldo Azevedo, o lobo da ditadura numa pele de cordeiro democrática.

O segundo é um desdobramento possível do primeiro – pelo menos nas cabeças neuróticas de uns e mal-intencionadas de outros: os eternos 20 anos do PT à frente da República poderiam significar o esmagamento da oposição, instaurando, assim, por via democrática, um governo de partido único, bem ao gosto dos stalinistas que compõem a esquerda brasileira. Novamente, o fantasma que paira sobre o imaginário de uma parcela da elite nacional é o de que Lula seja nada mais nada menos do que uma versão paz-e-amor do bolivarianismo chavista.

E, para Cantanhêde, não resta dúvida de quem é a culpa deste futuro tão incerto quanto macabro: ela pertence, por um lado, a Aécio, que “não apostou na vitória de Serra, convencido de que manter Minas seria suficiente para alavancar sua candidatura à Presidência na próxima eleição.” Por outro, a culpa de uma possível derrota de um político tão competente quanto Serra para um poste como Dilma só pode ser imputada a um imenso rolo compressor: “Lula, os ministérios, a máquina pública, a ramificação do PMDB e a maior coligação partidária. Não bastasse, vai ter, a partir da terça, o maior tempo na TV e no rádio.”

Felipe é que está certo: tudo não passa de inépcia e presunção da colunista da Folha, para qual, se se confirmarem as pesquisas, tudo o que acontecer de mal ao PSDB – e ao Brasil, logicamente – não é computado como desdobramento da incompetência do partido tanto nos oito anos em que esteve no poder, quanto nos outros tantos em que não soube fazer oposição.

O que Cantanhêde e aqueles que a lêem não conseguem ver é que os possíveis 20 anos do PT à frente do país não significam o fim da oposição e, conseqüentemente, um assalto bolchevique à democracia brasileira. Eles significariam, isso sim, o seu exato oposto: diante de mais uma derrota, a oposição vai ter que se reinventar, corrigir seu discurso, buscar novas lideranças – os Júnior e os Netos que povoam o congresso claramente não dão conta da coisa –, reescrever sua agenda, repensar suas prioridades e, talvez o que seja mais importante, tomar consciência de que precisa ampliar o seu poder de comunicação. Está claro que só os leitores da Folha não são mais capazes de eleger um Presidente da República.

Por que Lula escolheu Dilma?

É, o começo do segundo semestre chega mostrando que, como temia, vai ser difícil atualizar o blog. Pelo menos Rodrigo voltou. De todo jeito, caro 1,2 leitor semanal (contando eu), assine a “newsletter” ou nos siga no twitter, pra não perder seu tempo de vir aqui e não achar nada de novo – como dá pra ver que alguns fazem.

Bem, a Época saiu essa semana com a foto da ficha criminal de Dilma, prometendo revelar informações inconvenientes sobre seu passado terrorista. Não li e não gostei, até porque já deu pra ver mais ou menos do que se trata em mais um post memorável do NPTO. De toda forma, a crescente sensação da vitória do PT e o início de uma maior presença direta da candidata nos meios de comunicação vão plasmando melhor a imagem pública de Dilma.Arte com foto da capa da Época, que apoiadores de Dilma usam no Twitter 

Essa história da ex-terrorista é mais um ato de desespero da oposição, e pode até ter o efeito inverso do esperado. Uma das razões para isso é que contradiz a imagem de uma candidata pura criatura, criada ex nihilo por Lula para sucedê-lo.  Faz algum sentido dizer que uma mulher que decidiu pegar em armas contra a ditadura militar brasileira tem potencial de marionete? É a mesma inconsistência da ideia de uma pessoa que maltrata os inferiores em relação ao papel de pau mandado, como bem notou a própria Dilma na entrevista ao JN. Em parte, é a própria novidade da figura no cenário eleitoral nacional que talvez permita essas oscilações, fora a usual falta de preocupação com a coerência por parte de certos discursos.

A tentativa de mostrar uma falta de valor próprio de Dilma revela, aliás, o quanto o governo Lula fez estragos na oposição. Se consideram que o presidente é capaz de eleger um poste pra sua sucessão, então Lula está bem próximo mesmo do Deus transcendente da Bíblia, que não encontra limites pra seu poder, manipula o jogo, os personagens e as regras. Aquele para o qual a matéria não oferece resistência nenhuma. O todo poderoso mesmo. O cara. Nesse caso, não deveriam criticar a sua pretensa mania de grandeza, pois são os primeiros a inflá-la.

De fato, Lula revela mais uma vez muita capacidade nessa eleição, e não só pelo fenômeno da transferência de voto de um governo espantosamente bem avaliado. Mas não porque teria feito de quem bem quis sua candidata, mas por ter antecipado possibilidades que demonstram seu tino político afiadíssimo. A escolha de Dilma, na verdade, não foi nada arbitrária, e sim inteiramente circunstanciada.

Pra mim o cenário foi mais ou menos assim: com o mensalão, a imagem do PT foi fortemente desgastada; pra completar, como o antigo partido vestal não inventou a roda na hora de fazer besteira, e sim repetiu tramóias em que os demais eram especialistas históricos, isso deu num desgaste ainda maior da classe, tipo “político nenhum presta mesmo”; tendo dado a marca do social ao primeiro governo, era necessário mostrar ao eleitor que havia algo mais a fazer, e isso era tirar o Brasil da estagnação econômica.

Ora, Dilma responde a todo esse contexto. Não tem ligação histórica com o PT, pois era filiada ao PDT. O fato de nunca ter disputado eleição, num cenário em que os profissionais nesse meio são os mais queimados, torna-se até positivo. Quanto menos você for escolado nessa sujeira toda, melhor. O perfil de funcionária técnica só complementa esse aspecto. Pra exorcizar ainda melhor a figura expiatória de José Dirceu, só mesmo se não tivesse lutado contra a ditadura. Por fim, identificada com o desenvolvimentismo e com a cobrança por resultados, era a pessoa certa para comandar a Casa Civil no segundo governo, e o PAC. Além disso, e não menos importante, dá a ideia de um avanço: como diz Marina, primeiro um sociólogo, depois um operário, e agora uma mulher (a diferença pra Dilma nesse sentido Marina garante com a especificação “de origem humilde”).

Lula sabe melhor que ninguém: política jamais pode ser a arte de ajustar a realidade a seus desejos. A escolha de Dilma evidentemente levou em conta sua fidelidade, mas esteve muito bem ancorada, como tem que estar, na situação histórica.

Essa lição, aliás, a oposição parece não ter aprendido. Em artigo na Folha de ontem, Eliana Cantanhêde empurra pra Aécio Neves parte da responsabilidade pela situação de Serra, que agora o Datafolha confirma como desesperadora. Por um lado, é São Paulo não admitindo perder sozinho por sua responsabilidade. Por outro, é arrogância pura da oposição achar que Dilma vai ganhar a eleição por conta desses ou daqueles deslizes, como se tudo dependesse de seus desejos e decisões.

Desculpa aí, mas a realidade histórica manda lembranças.