19 de novembro de 2010

Não entre! Cão bravo!

É verdade que eu sou um cara obsessivo. Às vezes com uma coisa, às vezes com outra, não importa, tenho sempre algo que simplesmente não me sai da cabeça. Tentei fazer, nessas pouco mais de duas semanas desde o fim das eleições, uma espécie de retiro: política, só a que envolvia diretamente ao meu trabalho, injustificadamente atrasado. Mas devo confessar que não consegui. Via, em cada leitura que fazia para a tese, passagens que me remetiam a esse momento histórico que tanto o Brasil quanto os EUA estão vivendo: um avanço pesado de um pensamento, bem pensada a expressão, radicalmente conservador.

O mais simples seria tomar a crise de 2008 como esse elemento comum entre as duas realidades, mas como Felipe pontuou num dos comentários, essa chave não abre as duas portas. Pode ser que dê conta do caso americano, mas, quando chega por aqui, onde não deu nem pra pegar um jacaré na marolinha, ela perde sua força interpretativa. É claro que também poderíamos tomar as duas realidades como casos particulares, afinal, como já escreveu Roberto Da Matta, entre um Brasil hierarquizado e um EUA igualitarista vai um mundo.

Sinceramente, decidi que vou dar livre curso à minha neurose e tentar uma explicação de conjunto, até mesmo porque a polaridade de Da Matta nunca me desceu muito bem, baseadas em dois livros nada a ver. Minha hipótese: tanto Lula quanto Obama usurparam um lugar  que não lhes pertencia, ou seja, até foram convidados pra festa, mas o problema foi que sentaram na mesa e reclamaram que o Moët & Chandon estava quente. Por mais tolerantes que fossem, não restou outra saída pros donos do pedaço: foram forçados a chamar os seguranças pra botar ordem na casa.

1.

Publicado em 2002 pela editora Record, O fiador dos brasileiros, de Keila Grinberg, é uma prova de que ainda existe vida inteligente nas universidades brasileiras e que o dinheiro suado do contribuinte não está sendo desperdiçado em partidas de dominó e turismo acadêmico. O livro é uma adaptação de sua tese de doutorado, defendida na UFF. Mas como o negócio aqui é deixar fluir minha neurose, não vou me dar ao trabalho de fazer uma resenha. Pros curiosos, fica a breve indicação de que esse é um estudo sobre a construção, problemática, da idéia de cidadania no Brasil do comecinho do XIX, centrado, principalmente, na atuação do advogado Antonio Pereira Rebouças, cuja singularidade está na frustrada tentativa de ampliação dos nossos capengas direitos civis aos libertos. A história não é um roteiro de Hollywood: o senhor lá é cheio das mais interessantes contradições, bem típicas do nosso ideário oitocentista. Fica a dica.

Pois bem, lá pras tantas, Grinberg se detém nas conseqüências de duas revoltas de cunho racial que aconteceram em Salvador: a dos Malês (1835) e a Sabinada (1836-7). Óbvio que a elite branca da cidade – ou tão branca quanto se queria acreditar – ficou em polvorosa, com medo que a Bahia se tornasse o Haiti da vez. (Não dá pra não pontuar o caráter vanguardista da elite baiana, que antecipou Caetano em mais de 150 anos.)

Rebouças, já um político rodado à época, disputava um lugar ao sol com Francisco Gonçalves Martins, um jovem bacharel, aspirante a deputado, então chefe de polícia em Salvador. Eis a nota curiosa; reza a lenda que Martins agiu displicentemente na contençãos dos dois levantes. (As más línguas chegam a dizer que ele se encontrou com Francisco Sabino, seu amigo, soube dos seus plano e não fez nada.) Pois bem, mesmo assim, foi a partir desses dois movimentos que Martins se projetou politicamente como um deputado mantenedor da paz, enquanto Rebouças, que sempre se manisfestou publicamente – acho até que despencou para o Recôncavo para organizar alguma coisa, mas tô com preguiça de procurar a informação no livro – contra a balbúrdia, entrou em decadência. (Só viria a eleger-se deputado uma outra vez pelo estado de Alagoas.)

E por quê?
Apesar de, o tempo todo, afirmar-se defensor da ordem, mostrando que a sua cor nada tinha a ver com a adesão aos princípios monárquicos-constitucionais, apesar de reforçar o compromisso total com a legalidade, Rebouças acabaria sendo sempre considerado aquele que, justamente por sua visibilidade, defendia idéias perigosas [p. 154].
E quais eram essas idéias perigosas?
Mas, sendo um dos únicos a defender um projeto de sociedade escravista efetivamente liberal, com preocupações com a extensão da cidadania a um conjunto maior de habitantes do país, passou a ser uma figura extremamente contraditória e de difícil compreensão aos olhos dos seus pares [p. 154].

2.

Na minha mais do que humilde opinião de quem só o começou a ler agora, Pierre Bourdieu tem um puta dum achado: a idéia de espaço social como um lugar dentro do qual se vive um processo de eterna disputa pela capacidade de legitimar um conjunto de posições em detrimento de outras. Por exemplo, se os vagabundos não fossem vagabundos e se esforçassem para fazer valer sua visão de mundo, a ética do trabalho não seria nada mais do que uma boa piada ou terrível pesadelo.

Pois bem, nessa disputa, os grupos são distribuídos de acordo com certos princípios de diferenciação, dentre os quais Bourdieu aponta dois como os mais importantes: o capital econômico e o cultural. Ou seja, se o cara é podre de rico, mas, como filava aula pra fumar maconha que comprava com o dinheiro do pai, foi parar na Unip, um ponto a menos pra ele. (E se o exemplo não parece bom, isso talvez de dê porque o capital econômico continua dando as cartas a sua maneira por aqui.) Se outro, pobre pobre de marré deci, que pegava três ônibus pra chegar na Faculdade, se forma em direito pela San Fran, um plus pra ele, que pode começar a se valer desse capital para abrir algumas portas que estavam fechadas por causa de sua origem. Claro que o peso dos capitais é relativo e variam de acordo com períodos históricos e lugares determinados.

(Um parêntesis tragicômico: voltava eu de taxi do Mercadão com duas senhoras gaúchas – uma bem mais senhora do que a outra –, quando um homem com traços nordestinos bem estereotipados atravessou a rua na frente do carro. Depois de um breve bate-boca, o taxista me sai com essa: “Devia era jogar todo esse povo no rio. Já tá poluído mesmo”. – Curioso, que eu nunca tenha me lembrado dessa história em nenhum momento lá da polêmica envolvendo Mayara Petruso até começar a escrever esse post. Bom, fica a dúvida: ou ela já andou de táxi com aquele motorista, e eles compartilharam alguns pensamentos, digamos, pouco tolerantes, ou o Tiête ocupa um lugar bem curioso no imaginário paulistano –. Mas voltando, ao ouvir aquilo, prontamente me identifiquei como baiano, ao que eu  ouvi: “Mas você é diferente. Percebe-se que você tem educação.” Bourdieu na veia chega mais rápido ao cérebro?)

Feita essa mais do que prolixa introdução, chego onde eu queria chegar (ia citar em francês, mas resolvi fazer uma tradução bem porca – se Miceli, que estudou com o cara, fez –, por que eu não poderia):
Assim, a instituição escolar, na qual se pôde crer, em outros tempos, que introduziria uma forma de meritocracia ao privilegiar as atitudes individuais em detrimento dos privilégios hereditários, tende a instaurar, através de uma relação tácita entre a aptidão escolar e a herança cultural, uma verdadeira nobreza de Estado, na qual a autoridade e a legitimidade estão garantidas pelo diploma escolar. Pode-se voltar a história para ver que o reino dessa nobreza específica, que começou ligada ao Estado, é a conclusão de um longo processo: a nobreza de Estado […] é um corpo que se crê criador do Estado, e que, por ter criado o Estado, se crê como detentora do monopólio legítimo sobre o poder do Estado [Raisons pratiques, p. 42-3].


3.

Chegou a hora de tentar dar nó em pingo d’água e ver se sai desse samba do crioulo doido algo que faça um mínimo de sentido.

Primeiro, tanto Lula quanto Obama são naturalmente – e aqui eu uso naturalmente como se fora um político do XIX – perigosos. Não importa o que eles digam, não importa as promessas que façam, não importa, inclusive, as posições que tomem – muitas das quais notoriamente conservadoras –, eles vão ser sempre vistos como alguém que está fora do lugar. Numa analogia digna do nosso presidente, não importa se o Bahia está jogando contra o time dos skinheads simpatizantes de Hitler, cujo uniforme é a bata branca da Ku Klux Klan, um torcedor do Vitória que esteja sentado na Bamor, por mais bem intencionado que ele seja – e, numa partida desse naipe, isso é bem possível – vai ser visto com uma desconfiança agressiva.

A diferença de Obama está inscrita com tintas bem fortes na sua própria pele. E ninguém vai me convencer de que esse não é, numa sociedade tão racialmente dividida com é a norte-americana, um dos fatores que levam às percepções mais disparatadas: de muçulmano a anticristo, passando por um homem que foi educado pelo pai para odiar o american way of life. E mesmo tendo percorrido uma das instâncias culturalmente mais legitimadoras dos EUA, Harvard Law School, e ter sido o primeiro negro a dirigir o prestigioso Harvard Law Review, Obama se torna uma ameaça também pelo caráter extensivamente igualitário de suas políticas públicas, principalmente o Healthcare, taxados por muitos como socialista.

A meu ver, o caráter ameaçador de Lula, que faz emergir todo esse conservadorismo até bem pouco confortavelmente disfarçado de bom senso, até mesmo porque nunca antes fora posto tão à prova, toca aquelas mesmas duas questões, com um agravante. Se não na pele, Lula guarda na origem a marca da diferença: é nordestino. É verdade, não foi o primeiro nordestino a se tornar Presidente da República, mas foi o único que não passou pelas instâncias de legitimação acadêmica – basicamente o Colégio Militar e as Faculdades de Direito –, o que poderia ter lhe dado aquela pátina homogeneizadora típica da formação cultural das nossas elites. (Quem não gostar da tese que reclame com José Murilo de Carvalho: a idéia é dele.) Nesse sentido, se nos valermos do ponto de visto do nosso nobre taxista, Lula, embora líder político mundialmente reconhecido, é um cidadão menos qualificado – menos distinto – do que eu, moço bem educado que sou.

Mas como se não bastasse esse mal de origem e (ausência) de uma formação acadêmica, Lula ainda peca por ter adotado uma política de transferência direta de renda, o que representa, em sociedades capitalistas, a forma mais eficaz de acesso à cidadania. Vide o caso dos homossexuais, que ganharam mais representatividade a partir do momento em que se percebeu que eles eram um excelente público consumidor (estereótipos à parte). É somente com isso em vista – essa resistência à ampliação dos direitos à uma grande parcela da população até então posta à margem – que podemos entender – se é que um um dia na vida eu entenderei, mas vá lá – um comentário como a de Luis Carlos Prates, comentarista da RBS de Santa Catarina, que falava sobre a violência no trânsito:
Eu andei ontem na BR-101. Nunca a tinha visto com tanto movimento, nem em dias de semana […]. Mas o que é isso? Antes de mais nada, a popularização do automóvel. Hoje, qualquer miserável tem um carro. O sujeito jamais leu um livro. Mora apertado numa gaiola, que hoje chamam de apartamento. Não tem nenhuma qualidade de vida, mas tem um carro na garagem.
E como se não bastasse, volta ao tema depois de mais algumas declarações inacreditáveis.
Então é isso, estultícia, falta de respeito, frustração, casais que não se toleram, popularização do automóvel resultado desse governo espúrio que popularizou pelo crédito fácil o carro para quem nunca tinha lido um livro.
(Se alguém mais não tiver o que fazer, como eu, fica aqui linque para assistir a todo o vídeo. A frase, sem o tom de indignação e a cara de bom cidadão roubado em seu direito de uma estrada com menos carros, não tem a mesma graça, porque era pra rir, não?)

Assim, o conservadorismo que dá as caras de um jeito nunca antes visto na história desse país e que assume a feição mais virulenta de um movimento como o Tea Party aqui nos EUA não tem sua origem nas pretensas ameaças à democracia ou às liberdades constituídas, nem sequer na crise financeira ou no perigo socialista que Lula e Obama representariam. A origem, ao menos assim me parece, está na tentativa de resgate de um lugar que foi violado, uma propriedade que foi invadida por duas pessoas estranhas àquele espaço social: um muçulmano socialista e um nordestino analfabeto. E, como se não bastasse, não só não quiseram comer na cozinha junto com os outros empregados, como têm a ousadia de chamar um bando de desqualificados para participar da festa.

E sabem o que é o mais triste? O mais triste é se dar conta de que nenhum dos dois governos é tão progressista quanto essa gritaria neocon parece fazer crer. Acontece que, diante do avanço brutal e desmedido do conservadorismo, é necessário brigar com unhas e dentes por qualquer espaço já conquistado, por menor que ele seja. 

Um comentário:

Felipe Leal disse...

Massa o post, Cerqueira!
Uma diferença entre Lula e Obama, que Caetano pontuou de maneira infeliz, é ele "falar como um analfabeto". Eu fico particularmente impressionado em como as pessoas se irritam com o fato de um presidente da República "falar errado". Se recusando a vestir a língua paletó, Lula faz questão de preservar algo de penetra osado, e o fato de, ao mesmo tempo, ter adotado o paletó paletó (e lembro que isso foi um tema discutido no início do primeiro governo) não deixa de mostrar também as ambiguidades e a complexidade de sua figura.
Mas, seguindo seu raciocínio no post, o orador da turma Obama está aí para mostrar que não "adiantaria": esse sapo, barba bem feita ou não, muitos não engolem mesmo.
Isso tudo me lembra outra figura pra mim também meio enigmática, Collor. Nele podemos isolar inteiramente o fator "nordestino", pois era a sua única mancha em relação ao perfil dos demais comensais. Collor tinha, e acho que ainda tem, um mania de me sair com umas palavras difíceis tiradas do fundo do baú, e isso de maneira tão acentuada que chamava atenção. Era tentativa de contrabalancear o fator Nordeste? Puro provincianismo bacharelesco? E haverá algum sentido para além das conveniências políticas na aliança Lula-Collor?
Outra figura, talvez um pouco intermediária, seria Ciro Gomes. Esse aí de família rica, com tradição política, branco, adevogado, casado com atriz global e as porra (nem Aécio!)... Além das origens, peca por não seguir a etiqueta da festa, fala alto, xinga não só nos bastidores e nos comentários anônimos de internet... Fala bonito, fora o sotaque, que não faz a menor questão de esconder.
Enfim, o que eu queria dizer é: tem também o negócio da língua.