3 de novembro de 2010

Judicialização e o Rodeio de Gordas

Não coube como comentário em resposta ao post de Felipe "Mainardi na Safernet", então abro um novo.

O fenômeno da judicialização é um tema que me aflige bastante. Justamente por isso não comentei o post na hora que li, pretendia escrever com mais calma, mas como meu papel aqui é tomar porrada, vamos lá.

Parece-me muito evidente, quase inconstetável, essa tendência de judicialização dos mais variados aspectos da sociedade. E vejo muito pouca reflexão sobre o assunto. Até que ponto cabe ao Estado interferir e decidir sobre o comportamento das pessoas em detrimento da autorregulação? (perdeu o hífen, né?)

Um caso bem polêmico que quase ninguém concordou comigo é o do tal "rodeio de gordas". Superado o extremo mau gosto da "brincadeira", será que é caso de crime, de "crime grave" como andam dizendo por ai?

Eu tenho muita dificuldade em reconhecer isso como agressão. Sério (por favor, não me odeie por isso). Pela descrição, os moleques montavam nas costas das meninas por alguns segundos. Isso é agressão física? Constrangimento ilegal?

É inegável que houve humilhação, mas também não dá pra negar que é brincadeira de moleque. A gente está falando em intenção deliberada de humilhação ou em uma brincadeira inconsequente e de mal gosto? É uma diferença sutil, mas relevante.

É claro que eu concordo que tem de haver uma fronteira a partir da qual a brincadeira de moleque vira crime, senão a gente perdoa os meninos que tocaram fogo no índio. A pergunta que se faz é: qual o critério?

Entendo que o critério não pode ser exclusivamente subjetivo, como tem tanta gente defendendo. Não dá.

A sociedade, bem ou mal, sempre conviveu, tolerou e em muitos casos até estimulou formas de constrangimento moral a seus integrantes como forma de moldar caráter. Praticamente todos os "ritos de passagem" presentes em tantas sociedades envolviam e muitos ainda envolvem alta dose de constrangimento (físico e moral). Uma diferença considerável aqui é que, tradicionalmente, a pessoa faz a escolha de se submeter ou não. Mesmo assim, sabendo da diferença, faço ponto de que o constrangimento, em alguma dose, é parte da vivência em sociedade.

A sensação que eu tenho é que as pessoas têm cada vez mais dificuldade de lidar com qualquer tipo de contrariedade e esse avanço do Estado para regular condutas que num passado recente jamais receberiam sua atenção apenas estimula essa dificuldade moderna. Essa judicialização, pra remeter à pergunta que iniciou o debate, muda o parâmetro de sensibilidade das pessoas.

E a pergunta que temos que fazer é: qual o parâmetro de sensibilidade razoável.

No fundo, é a isso que essa discussão remete.

E mesmo num contexto de interferência do Estado, há que se considerar graus de interferência. Se determinado comportamento de uma pessoa sujeita outra a humilhação, pode haver duas consequências "judiciais" diretas: dano moral e crime de injúria (não estou preocupado em ser juridicamente preciso, mas discutir o conceito geral). Sempre que houver dano moral haverá crime? Todo dano provocado configura crime? Encarar a necessidade de interferência do Estado a ferro e fogo, ao extremo, implica responder sim às perguntas. Não me parece razoável.

Voltando ao caso específico (e respeitando a opinião das pessoas que entendem que esse caso ultrapassou o limite), parece-me muito mais razoável que as consequências dessa brincadeira idiota decorram da Faculdade, da organização do evento e da comunidade específica na qual a brincadeira aconteceu. A matéria mencionada menciona esses movimentos.

Minha opinião é que essa comoção da sociedade, a reflexão, a crítica e o repúdio formal, permite um amadurecimento das pessoas, dos valores que aquele grupo quer preservar, e dá cara e aplicação pra esses valores, preenche de conteúdo o conceito. Há uma definição de limites. Quando as pessoas entregam essa decisão para o Estado, quando limitam-se a buscar essa "judicialização", o reflexo social tende a ser menor, são os "doutos" que julgam, que conhecem os critérios, que sabem o que é razoável e o que não é, não as pessoas de verdade (e digo isso sem querer ofender juiz, veja bem).

Não propus que os autores da infeliz brincadeira "não respondam por seus atos" (como já me acusaram em discussões ao vivo), mas minha opinião é que o grupo, a comunidade, pelos meios adequados que dispõe, reaja a esse tipo de conduta.

Não é papel do Ministério Público e do Poder Judiciário punir esses rapazes.

Em tempo, eu assinei o abaixo assinado.

Um comentário:

Felipe Leal disse...

Não sou pró-judicialização a princípio, pra mim é questão em aberto.
Parece importante mesmo a autorregulação, com ou sem hífen, e o cuidado pra não deixar tudo pros "doutos".
Eu discordo é do caso concreto, e tenho uma questão.
Quanto ao "rodeio", não tenho ideia de como é isso em termos jurídicos, mas moralmente... Rapaz, pra mim teve intenção de humilhar sim. Se bem entendi a coisa, teve um grupo que organizou tudo com antecedência, estabelecendo até regras pra ver quem ganhava o "jogo". Não é como se o sujeito tivesse tomado umas e, no meio da festa, fizesse uma merda de que depois se arrependeria. Tirando que não são adolescentes de 15, 16 anos, mas universitários de uma universidade pública respeitada. Não é razoável cobrar mais consciência de seus atos, até em termos judiciais?
É interessante o que você fala sobre a dificuldade com o constrangimento. Agora, me parece bastante razoável que, nesse caso, as meninas tenham se sentido humilhadas. Os caras se aproximavam na festa como se estivessem interessados nelas. Depois, iam e montavam. E já tem toda uma pressão social envolvida aí. Tirando a superexposição: se a princípio a ideia é denunciar, a cobertura da imprensa não deixa de aumentar o peso do que aconteceu.Uma delas parece até que decidiu não voltar à faculdade. É frescura? Qual critério objetivo se poderia tomar?
Nesses casos de bullying, eu vejo exagero se falarem em processar por qualquer apelido, pela exclusão dos grupinhos na escola, bolinha de papel na nuca, etc. Tem o risco de superproteção, de tirar a autonomia do professor, e até de criar uma indústria pra advogados.
E minha pergunta é: até que ponto a autorregulação elimina a intervenção do Judiciário?
Eu sei que você não disse isso, mas é porque, às vezes, a impressão é que o Judiciário age já respaldado, instigado, pressionado ou até encarniçado pelo julgamento social.