Este é um post chato. Quer dizer, ainda mais chato do que os demais postes até então escritos. E como ele pode ser mal entendido, uma palavrinha: se eu estivesse em São Paulo, eu teria participado em apoio à marcha das vadias. Uma declaração das manifestantes, contudo, me deixou, digamos, pensativo.
Lá pelos 0:59s, Vanessa Guedes Garcia, organizadora da marcha, explica a versão brasileira, que, claro, não podia deixar de lado a piada que Rafinha Bastos fez em relação ao estupro, assim explicada:
A gente fez uma versão aqui porque gerou um estopim essas últimas declarações do CQC dentro do Comedians, que é o clube de comédia do Rafinha. Ele falou, durante uma das apresentações dele, ele fez uma piada falando que mulher feia deveria ser estuprada, porque é um favor a ela, e o homem que estuprasse a mulher feia deveria ser abraçado.
Bom, não assisti aos stand-ups de Rafinha, mas a história que eu li na Rolling Stones era um pouquinho diferente.
"Toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia pra caralho. […] Tá reclamando do quê? Deveria dar graças a Deus. Isso pra você não foi um crime, e sim uma oportunidade. […] Homem que fez isso [estupro] não merece cadeia, merece um abraço".
Na versão de Vanessa há um acréscimo, que não existe no texto original: “[…] ele fez uma piada falando que mulher feia deveria ser estuprada.” O acréscimo de Vanessa deslegitima seu protesto? Absolutamente não. E não o deslegitima porque a piada do apresentador do CQC precisa, sim, ser criticada. A questão é: que tipo de crítica?
A meu ver, o acréscimo de Vanessa é um tiro que sai pela culatra por dois motivos: primeiro, porque, ao enfatizar a esfera judicial ao trazer para sua fala uma incitação ao estupro – que podia até existir, é verdade, mas estava em segundo plano –, facilita a defesa do cara, que tem simplesmente que dizer que não disse nada do que Vanessa acrescentou à sua piada, o que é verdade.
Segundo, porque, a meu ver, explicita o pouco alcance de uma crítica mais à esquerda. Ao escolher – consciente ou inconscientemente – trazer para frente do debate a questão da incitação ao estupro, ela a torna concreta – a incitação –, como se fosse esse o real problema da piada. Esse movimento, contudo, e por isso mesmo, torna a crítica e o protesto mais falho, uma vez que ele não dá conta do conjunto de pressupostos de que Rafinha Bastos se vale para construir a estrutura da sua piada: a relação natural entre beleza e sexo, constantemente realimentada pelas propagandas de cerveja (quem não se lembra de que uma série de pseudo-anúncios que correm por aí de que as cervejas estão há séculos ajudando as mulheres feias a fezer sexo); o próprio ato sexual se torna tão urgente, que ele deve ser tratado dentro de uma lógica capitalista ao mesmo tempo exploratória e acumulativa, isto é, é uma oportunidade não se perde – mesmo que a mulher diga não –, porque, no fim das contas, acaba entrando para o "currículo" do macho alfa.
(E exemplos desse tipo de crítica menos óbvias do que a criminalização pura e simples, mas, quem sabe, mais radicais, podem lidos vistos aqui, aqui, aqui.)
Achei a marcha das vadias uma idéia excelente, exatamente porque tem por finalidade fugir das críticas de bengala e atacar o senso comum. Só não podemos facilitar as defesas mal intencionadas.
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