Por mais deprimente que seja, era esperado que a história do medo dos “radicais do PT” aparecesse na campanha para presidente, mas talvez não logo no seu início oficial. Primeiro foi a capa da Veja da semana passada, com um dragão vermelho de cinco cabeças representando “o monstro do radicalismo”. Depois foi o vice Índio chamando Dilma de guerrilheira e ateia. Falta de ideia melhor? Desespero?
A Veja, que antes via em Lula o risco de não domar os monstros radicais, agora é só elogios pra habilidade política do presidente, mas não deixa de desconfiar da capacidade de sua pupila para domar a fera. Os argumentos são basicamente dois. Em primeiro lugar, a lambança que a campanha de Dilma fez ao protocolar do TSE, como programa de governo, o programa do partido, que conteria as tais ameaças à democracia. Evidência, claro, de que o discurso moderado seria apenas maquiagem de campanha, enquanto os planos de dominação estariam internamente bem claros para os petistas.
Em segundo, a inexperiência política da pupila: puseram um cientista político para prever uma “briga fratricida de consequências imprevisíveis”, caso os resultados econômicos de um possível governo Dilma decepcionem. Fora o argumento de autoridade (e essa posição dificilmente seria consensual na área, imagino), não se apresentam fatos a sustentar essa tempestade no horizonte.
O pior é que, estando de férias aqui em Salvador, vejo em conversas na família que a coisa não deixa de ter suas consequências, e eis que se repetem as falácias todas, inclusive a de uma suposta tendência petista a controlar os meios de comunicação. Passei um olho nas temíveis propostas de comunicação do PT, baseadas nos resultados da Confecom – Conferência Nacional de Comunicação, que aconteceu no ano passado. Propostas feitas por grupos de trabalhos formados por pessoas de diversas áreas de atuação e diversos estados. Têm valor só de consulta para o governo federal, e não normativo. Mas dão um medo, cruzes!
Já em uma das seções introdutórias do documento do Ministério das Comunicações que divulgou as propostas, o leitor da Veja certamente esperaria encontrar a demonização do empresariado da comunicação nacional, pois ali é feito um panorama histórico do setor no país. Em vez disso, encontra-se, por exemplo, uma afirmação como esta, a respeito de Chateubriand:
“Se hoje a telenovela brasileira é um dos produtos mais conhecidos em diferentes continentes, a TV surgiu do improviso e da ousadia empresarial de um homem de negócios que enxergou o futuro”.
Se isso não for o bastante para fazer tremer os meios de comunicação empresariais, que se preparem para esta tirânica declaração de vontade quanto à rede mundial de computadores:
“Manter livre de restrições a circulação de informações pela Internet.”
Os petistas, como se percebe, pretendem transformar o país não na Venezuela Chavista, mas sim na China. Daqui a pouco o pessoal da Google também nos deixa.
O que explica tanta preocupação, no fundo, só pode ser a abertura de discussões sobre a concessão pública para a radiodifusão. É de propósito que nunca se dispõem a pôr, de um lado, a imprensa e, de outro, o rádio e a TV. No caso desses últimos, há uma limitação física quanto aos canais possíveis. Pense na TV VHF ou na rádio FM, por exemplo. Em parte por isso, cabe ao Estado dizer com que critérios serão obtidas as concessões para as empresas e de acordo com que objetivos. A questão do sinal digital pode ter mudado um pouco as coisas, especialmente quanto â limitação, mas acredito que o quadro geral seja esse aí.
Como a concessão ocorreu na prática no Brasil? Sempre por meio de influência, não política, mas de politicagem. O número de rádios nas mãos de políticos, sempre que divulgado, impressiona. Na Bahia, a retransmissora da Globo é da família de ACM desde que este foi ministro das Comunicações de Sarney. E sabemos bem qual o efeito disso.
É essa a liberdade que se trata de proteger: a de tomar um espaço de interesse público, que deveria seguir critérios estabelecidos pela Constituição, como coisa privada, um negócio feito outro qualquer. Isso não impede, contudo, que os empresários façam valer seus interesses politicamente.
O que realmente assusta nas propostas da Confecom, assim, só pode ser a disposição de discutir o problema das concessões. Fala-se ali em fiscalizar o cumprimento das diretrizes constitucionais sobre o tema; da publicidade dos dados relativos às concessões; da obrigatoriedade de os interessados apresentarem, no momento da renovação, documentos comprovando que cumpriram suas obrigações, etc. Enfim, alguém parece lembrar que se trata de um serviço público, e que as empresas devem ser cobradas por isso.
Além disso, certamente não agradam muito as propostas de limitação do direito de propriedade relativo aos meios de comunicação: aumento da restrição para propriedade por estrangeiros e, o que deve soar como heresia para um grupo como a Globo, a proibição da propriedade cruzada de meios de comunicação (quando a empresa tem jornal, revista, rádio, TV), sempre para controlar a criação de monopólios. Partidários mais renhidos do capitalismo nada teriam contra esse tipo de proteção, suponho.
Acredito que a questão do Conselho de Jornalismo não incomoda. Só aparece no meio das lamúrias pra fazer nuvem de fumaça e ainda é uma cereja do bolo na cooptação de jornalistas, que surpreendentemente agem como quem não sabe de nada ao repetirem, com convicção de teleprompt, editoriais a favor dos patrões.
Mesmo que o plano de governo de Dilma seja uma espécie de Mogwais (aqueles bichinhos fofinhos) prestes a transformarem-se em Gremlins, é de se perguntar de quem mesmo devemos ter medo. A questão não é se a mídia deve ser controlada, mas sim impedir que uns poucos a controlem se lixando pro interesse público.
PS - Era pra eu falar de outras coisas, mas este post já tá grande demais. A edição da Veja com o dragão na capa é um primor, e muito inspiradora.
- Veja
aqui o documento sobre o Confecom (clicando em “saiba mais”, aparece a opção de baixar o arquivo).