5 de junho de 2010

A cobertura da Folha sobre o “dossiê”

Sábado de manhã, me deparo com reportagem da Carta Capital intitulada “O dossiê do dossiê do dossiê…”. Pô, eu vinha preparando um post pro blogue chamado “Dossiê do dossiê”. Perdi o título, mas insisto, até porque minha abordagem vai ser um pouco diferente.

Na quinta, 3 de junho, Luiz Nassif publicou texto que esclareceu bastante os bastidores desse suposto dossiê contra Serra supostamente organizado pela campanha adversária supostamente por ordens da própria Dilma. Bem verossimilhante, o artigo diz mais ou menos o seguinte: a acusação parece ter sido uma maneira de o tucano defender-se preventivamente da divulgação de um livro que está sendo escrito pelo repórter Amaury Ribeiro Jr. sobre as privatizações da era FHC (quando mais?). E o pior é como a coisa teria surgido:

“Quando começou a disputa dentro do PSDB, pela indicação do candidato às eleições presidenciais, correram rumores de que Serra havia preparado um dossiê sobre a vida pessoal de seu adversário (no partido) Aécio Neves.

A banda mineira do PSDB resolveu se precaver. E recorreu ao Estado de Minas para que juntasse munição dissuasória contra Serra. O jornal incumbiu, então, seu jornalista Amaury Ribeiro Jr de levantar dados sobre Serra. Durante quase um ano Amaury se dedicou ao trabalho, inclusive com viagens à Europa, atrás de pistas.(…)

Nesse ínterim, cessou a guerra interna no PSDB e Amaury saiu do Estado de Minas e ficou com um vasto material na mão. Passou a trabalhar, então, em um livro, que já tem 14 capítulos, segundo informações que passou a amigos em Brasília.”

Na mesma quinta-feira, o jornalismo da Folha se ateve ao declaracionismo (a nova versão do criacionismo pelo verbo), e isso rendeu a manchete principal: Serra acusa Dilma de fazer dossiê; petista nega. Nesse dia seguiram-se vários quebra-paus, e o PT acabou decidindo processar Serra pela acusação. Gostei da troca de afagos entre o jornalista Ricardo Noblat e o presidente do PT, José Eduardo Dutra no Twitter:

“@BlogdoNoblat - Na versão que começou a circular, tem 110 páginas o dossiê contra Serra elaborado pelos novos aloprados do PT. 2:53 AM Jun 3

@ZéDutra 13 - Você sabe quem elaborou o tal dossie? Então diga. Ficar falando em "novos aloprados do PT" é desonestidade intelectual 9:41 AM Jun 3

@BlogdoNoblat - Eu sei, e o senhor sabe. E não me venha falar em desonestidade intelectual. Há companheiros do senhor que entendem disso melhor.

@ZéDutra 13 - Vc é um jornalista bem informado e deve saber a verdadeira origem desse suposto dossiê. Nâo queira jogá-lo no nosso colo.”

Ontem, sexta, a Folha apenas publicou a notícia sobre a representação do PT e divulgou alguns dados sobre o dossiê, ainda relacionando-o à campanha de Dilma. O jornal ignorou inteiramente o texto de Nassif, que comentou a omissão.

Apenas hoje as edições impressa e online mencionam o repórter Amaury Ribeiro Jr, em matéria com a seguinte manchete: “Jornalista e delegado são pivôs de intriga do dossiê”. Em vez de ligar o início de suas investigações ao PSDB mineiro, a Folha prefere apontar para o Estado de Minas, “próximo politicamente de Aécio”.

Seguem-se minhas questões.

1) Por que a Folha ignorou inteiramente o texto de Luiz Nassif, autor do furo?

Como se sabe, Nassif foi colunista do jornal e, se não me engano, membro do conselhor editorial. Saiu durante o governo Lula, meio que num clima de que teria perdido sua “imparcialidade”. Gostaria de ver o trecho do manual da Folha que diz ser proibido atribuir afirmações a ex-empregados.

Talvez então se tratasse de rigor editorial, da necessidade de primeiro apurar os fatos. Ora, aposto com qualquer um que a Folha de amanhã terá trocentas declarações que por si só viram notícias, de fontes muito mais suspeitas que Nassif.

Para justificar a repercussão de uma afirmação como a de Serra, de que Dilma era a principal responsável pelo tal dossiê, certamente se evocaria um dos pilares éticos da empresa: o direito do leitor à informação. Pouco importa se era apenas jogo de cena do candidato, a Folha seria como aquele seu amigo que nunca te esconderia nada, ou aquela tia que causa frisson em reuniões familiares por sua falta de papas na língua. Ao leitor cabe julgar o mérito da informação. O mesmo vale para invasão de privacidade, violação de sigilos bancário e telefônico, reprodução de buchichos dos corredores da política, etc. É claro, tudo isso é válido em caso de predomínio do interesse público, mas a questão é: quem julga o que deve ser informado e o que deve ser calado, e com que critérios?

Esse caso é até pouco grave, considerando que bem ou mal a Folha hoje deu algumas informações sobre o livro do jornalista, que, a partir de uma matéria da respeitabilíssima Veja, virou o “dossiê” da tal intriga. A essa altura, era inevitável. Mas se trata apenas de um exemplo entre mil.

Não nos enganemos: o direito do leitor à informação é o direito da empresa jornalística de controlar a informação. Com a internet, podem ter se ampliado as fontes, mas muito pouca gente lê blogues de política, seja por desinformação, seja por falta de acesso, seja porque, convenhamos, há coisas muito mais interessantes e bem escritas pra se ler nesta vida.

2) Por que a manchete de hoje enfatiza o papel do jornalista e do delegado?

A pergunta me parece importante porque há ao menos duas outras questões de muito mais valor jornalístico: se é verdade que Aécio e seu grupo político mandaram fazer um dossiê preventivo contra Serra; e o que o livro de Amaury Ribeiro Jr. traz de novo sobre as privatizações (ele não teria escrito tanto apenas pra recontar a história).

Existe ainda a questão do envolvimento do delegado Onézimo de Souza com o episódio da Lunus, que tirou Roseana Sarney do páreo e deixou campo aberto pra candidatura de Serra na campanha de 2002.

A ideia, suspeito, é levar um pouco mais adiante a história de que há novos “aloprados”, ou “neoaloprados”, como já se disse por aí (um rótulo assim, percebam, é extremamente eficaz). Baixada a poeira, tanto faz o que de fato aconteceu ou deixou de acontecer. Até outubro, veremos pulularem remissões a esses “fatos” de que a campanha de Dilma retoma as piores práticas do partido, o que aliás apenas revelaria sua faceta autoritária e o desrespeito geral desses stalinistas pelos princípios democráticos, como a legalidade e a liberdade de imprensa.

Bismarck é, se bem me lembro, o autor da célebre máxima segundo a qual as leis são como as salsichas: é melhor não saber como se fazem. O mesmo, alguém já disse, aplica-se às notícias. Outra afirmação notória sobre a legislação - “Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei” – também poderia ser dita do jornalismo: seu exercício deve ser mais cuidadoso quando se trata de fuçar a vida dos adversários.

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